The broken column, Frida Khalo, 1944

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Oiço vozes para além do parapeito



Oiço vozes para além do parapeito da janela.
Um cantor, na falésia, sonha em beber o mar...
O cerúleo céu é sem cor !
E eu, aqui, dormitando em pesadelos,
Meço em 37,7 a minha dor !...

Pregões de mulher rouca:
Sardinhas e palavras poluídas -
Rasgos do dia pendurados na corda da roupa...
E eu, aqui, auscultando as minhas feridas,
Achaques, pústulas, tremuras...

Um noise surdo, vibrante, contínuo,
Entrecortado pelo tinir do ferro de engomar -
 em que a senhora ao lado é maestra !
E eu, aqui, em solfejos e gritos
Choro para desatino da orquestra !

É uma mulher que canta, agora.
É mesmo aqui ao lado, no quarto da engomadeira.
É uma mulher que contralta em gritos!
E eu, aqui, soprano, soltando gemidos
Enterrada nesta poltrona-cadeira !

Lá fora há passos e apitos,
Motores e um marulhar terrífico
De ruídos, barulhos, riscos ...
E eu, aqui, já minha cabeça estala ,
Já perdi o tempo, quiçá a fala !

Lá fora todos passam...
E eu ... para aqui, coitada !


(Henry Ford Hospital, Frida Khalo, 1932)

Sem comentários:

Enviar um comentário